Quem passa hoje na praça da Convenção no bairro de Beberibe e se depara com o monumento erguido em 1972, obra do gigante Abelardo da Hora, sequer imagina que ali (ou bem próximo daquele local) um grande acordo conseguiu evitar um banho de sangue fratricida na então Província de Pernambuco em 1821, um ano antes da emancipação política do Brasil em relação a Portugal, efetuada em 7 de setembro de 1822 às (quase) margens do riacho do Ipiranga por D. Pedro. Mazombos (como eram chamados os “nascidos” na terra) e pés-de-chumbo (como chamavam os portugueses), e aqui vale lembrar que estes adjetivos eram uma espécie de bullyng da época, chegaram a um consenso em 5 de outubro de 1821 no acordo que ficou conhecido como Convenção de Beberibe.
As tensões na Província de Pernambuco vinham de muitos anos antes e estavam relacionadas principalmente à questões políticas (a ingerência da Coroa Portuguesa sediada no Rio de Janeiro que impedia a autonomia local) e econômicas (cobranças de impostos e decadência da agromanufatura da cana-de-açúcar agravada com a descoberta de ouro e metais precisos no centro-sudeste). Pernambuco cultivava seus brios desde a expulsão dos holandeses em 1654 e não estava disposto a ceder aos pleitos da corte joanina que estava exilada no Brasil após a invasão das tropas napoleônicas em Portugal.
No dia 6 de março de 1817 explodiu uma Revolução republicana, federalista, e constitucionalista; liderada principalmente por religiosos ligados à Maçonaria, daí o nome “Revolução dos Padres”. Frei Caneca tem seu batismo revolucionário nesta revolta (ele estava na benção das bandeiras em 2 de abril de 1817). 1817 teve de tudo um pouco: brigas, mortes, bandeira (que aliás até hoje é a bandeira oficial do Estado, claro que com algumas modificações), jornal (“Preciso”), um esboço de constituição, embaixador do Brasil nos Estados Unidos (Antônio Gonçalves da Cruz, mas você ouve falar mais dele como Cruz Cabugá), e até um romance shakespeariano entre o comerciante capixaba Domingos José Martins e a filha de comerciantes portugueses Maria Teodora da Costa.
Tudo ia bem se não fosse um detalhe: alforriar os escravizados que lutassem lado a lado com os revolucionários; afinal a vibe hatianista de Toussaint Louverture (liderança negra da Independência do Haiti) não havia sido bem digerida pelos senhores de engenho, que de antemão retiraram seu apoio à causa rebelde. Não se faz uma revolução apenas com ideias e, principalmente, sem armas! Dom João, retratado equivocadamente como um néscio (eufemismo de idiota) não titubeou em reprimir violentamente a Revolução de 1817 que durou apenas 75 dias e terminou com muito sangue derramado, inclusive eclesiástico – pela primeira vez na História do Brasil condenou-se padres a pena capital. Prisões e degredos deram o plus que faltava para desencorajar novas revoltas na província, agora sob o jugo do general português Luís do Rego Barreto.
1817, no entanto, deixou feridas abertas que sangraram em 1820 com a Revolução Constitucionalista do Porto que aconteceu em 24 de agosto daquele ano, e desatou dois nós: o da anistia aos presos políticos de 1817, e o do reconhecimento do poder local das juntas governativas nas províncias. É nessa brecha que os goianenses, liderados por Francisco de Paula Gomes dos Santos e Felippe Menna Callado da Fonseca, egressos das lutas de 1817, tomaram posse na Junta Governativa de Goiana em 29 de agosto de 1821. Rego Barreto ficou enfurecido, mas sem deixar o cargo, um afago de Dom João pelo servicinho sujo feito para reprimir os pernambucanos.
A província de Pernambuco ficou então dividida entre duas juntas e o impasse estava na disputa entre quem de fato mandaria: os mazombos de Paula Gomes e Callado da Fonseca ou os pés-de-chumbo de Rego Barreto? Olha aí as rusgas de 1817 aparecendo novamente… Já que não havia um consenso amigável, ambas trocaram a força do argumento pelo argumento da força! E estavam dispostos a resolver no braço e na bala o que não conseguiram na conversa e no bico de pena.
Em 15 de setembro de 1821, o exército goianense (se é que podemos chamá-lo assim, até porque estava muito mais para uma milícia particular) desceu rumo ao Recife, comandado por Felippe Menna Callado da Fonseca. Houve conflitos em quatro pontos de Olinda, inclusive na estrada entre o Engenho Fragoso e o bairro de Guadalupe; e em Afogados no Recife. Se não fosse pela deserção nas tropas leais a Rego Barreto, os pernambucos teriam sido derrotados logo em Igarassu, mas valendo-se dessa desorganização militar do lado português, foi que Callado da Fonseca conseguiu levar os goianenses até Recife e cercar a cidade.
À beira de um confronto violento e mortal para ambos os lados, os comandantes Callado da Fonseca e Rego Barreto firmaram uma trégua, que reconhecia a existência das duas juntas: a goianense e a recifense; seguindo de uma proposta, no mínimo, audaciosa e arriscada para os portugueses: decidir nas urnas quem deveria governar a província. Rego Barros dobrou a aposta e assegurou que se fosse derrotado deixaria o Brasil. O pleito eleitoral se deu em 26 de outubro de 1821 na Sé de Olinda, e para alegria dos pernambucanos, o vencedor foi o comerciante Gervásio Pires Ferreira. Rego Barreto cumpriu a promessa e no mesmo dia zarpou para Lisboa, acompanhado de parte de suas tropas e de protegidos e amigos, compreendendo que sua missão no Brasil estava concluída. Era o fim do Governo português em Pernambuco.
A vitória de Gervásio Pires, na prática, representou a autonomia político-administrativa que vinha sendo pautada desde a Revolução de 1817. Apesar de não ter concluído seu mandato (ele sofreu um golpe em 17 de setembro de 1822, dez dias após a Independência do Brasil e acabou sendo substituído por um grupo ligado à oligarquia rural: a “Junta dos Matutos”), Gervásio Pires na condução da Junta Provisória do Governo de Pernambuco conseguiu antecipar em onze meses a emancipação política pernambucana antes mesmo do Grito do Ipiranga. Convém salientar que é impossível separar a Junta Governativa de Goiana da Convenção de Beberibe. Ambas são dois lados de uma mesma moeda, cujo valor está na coragem, ousadia e determinação do povo pernambucano.
* O autor é professor da rede pública estadual de ensino e historiador. Membro da ALAP (Academia de Letras e Artes da Cidade do Paulista), IAHGP (Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano) e do IHGAAP (Instituto Histórico. Geográfico, Arqueológico e Antropológico da Cidade do Paulista).
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