sexta-feira, 22 de abril de 2011

RELATOS E RETRATOS DA PAIXÃO DE JESUS CRISTO


por José Ricardo de Souza*

Um dos momentos mais marcantes da liturgia cristã é sem dúvida as celebrações da Semana Santa, cujo início se dá com o Domingo de Ramos, quando celebramos a entrada triunfal de Jesus Cristo em Jerusalém, aclamado como rei pela multidão, e terminando com o domingo da Páscoa, onde celebramos a vitória da vida sobre a morte, representada na ressurreição de Cristo. No entanto, nossas atenções concentram-se na parte mais dolorosa da Semana Santa: a Sexta-Feira da Paixão, quando os cristãos relembram os momentos de dor e martírio impostos a Jesus Cristo, Nosso Senhor. Mas, finalmente, por que Cristo morreu ? Quais as causas materiais e/ou espirituais que levaram Jesus à crucificação ?

Se perguntássemos para algumas pessoas por que Cristo morreu, inevitavelmente a resposta seria “para salvar os pecadores” ou “por nossos pecados” e ainda “para resgatar a humanidade do pecado”, e outras respostas desse teor. Do ponto de vista espiritual, teológico, elas estão corretas, pois uma leitura mais cuidadosa do Antigo Testamento revela exatamente os propósitos para os quais Deus, ou Iawvé para os judeus, mandaria seu filho para morrer em função da redenção dos pecados dos homens, o que de fato aconteceu. Cristo foi o divisor entre a promessa de redenção dos profetas e a libertação dos pecados proposta por Ele e seus seguidores. Em nenhum momento, segundo constam nas escrituras, Cristo abdicou da missão para o qual foi enviado. Sentiu medo, pavor, abandono, mas levou até as últimas conseqüências o sacrifício de morrer por amor ao Pai e aos homens.

Dentro de uma perspectiva histórica, mais humana, portanto social, diríamos que a morte, ou melhor, o assassinato de Cristo foi obra, por sinal muito bem articulada, dos grupos para os quais Cristo representava uma ameaça, ou seja sacerdotes do templo, fariseus, e anciãos que constituíam uma casta privilegiada, sustentada pelas tradições religiosas de Israel. Era gente que vivia às custas da exploração do povo, submetido a mais absoluta miséria, sendo portanto duplamente dominada, pelos romanos, e pela burocracia religiosa do Templo. Foi para e com essa gente explorada, que Cristo durante seus três anos de militância pública pregou sua doutrina, baseada em princípios como a partilha (numa sociedade onde poucos tinham tudo e a maioria nada tinha), o amor ao próximo (numa sociedade onde os recursos da força bruta falavam mais alto) e o desprendimento pelos bens materiais.

A pessoa de Cristo foi encarnando aos poucos o estereótipo atribuído a todos os que ousam lutar por uma sociedade justa: o de subversivo, o agitador, aquele que poderia por em perigo a ordem social dos ricos e poderosos. Sendo assim, aquela voz que clamava por justiça deveria ser calada, seus ensinamentos postos no ridículo e esquecidos, sua prática pastoral, conscientizadora e libertadora, terminantemente proibida. E assim foi feito. Um complô com o objetivo de encaminhar o Cristo para a crucificação. Entretanto, faltava o principal, os argumentos necessários para justificar a execução. E assim, Jesus foi, injustamente acusado de blasfêmia (que não resultaria na pena capital) e de tentar rebelar o povo contra o poderoso Império Romano, que aliás nunca foi comprovado historicamente que Cristo estivesse envolvido em qualquer conspiração contra os romanos, embora se suspeita, com alguma fundamentação, que alguns discípulos, dentre eles Judas Iscariotes (e até o conhecido Barrabás) estivessem infiltrados num movimento separatista com o objetivo de libertar os judeus dos romanos e restabelecer o reino de Israel. Isso sim, poderia levar Cristo à morte.

O julgamento sobre o qual Jesus foi submetido foi uma verdadeira farsa montada para legitimar o seu assassinato. Faltaram provas concretas que levassem a uma condenação, as testemunhas eram falsas, gente ligada aos sacerdotes, especialmente corrompida para isso, e o principal: o direito de defesa do réu foi solenemente negado. Vê-se isso claramente no vai e vêm entre Pilatos, o governador e Herodes, o Tetrarca da Judéia, cada qual querendo livrar-se do peso de ter que condenar a Cristo, coisa que para eles era uma exigência dos sacerdotes, ao qual eles recusavam-se a cumprir. Restou apelar para o plebiscito popular: diante da multidão Pilatos pôs Cristo e Barrabás para que o povo escolhesse quem mereceria a misericórdia. Numa tentativa desesperada e inútil, Pilatos ainda chegou a ordenar que Cristo fosse submetido a flagelação romana, castigo sobre o qual eram aplicadas trinta chicotadas sobre o réu, ao qual muitos não resistiam. Provavelmente, Pilatos julgava que com isso aplacasse a ira dos sacerdotes e dos anciãos. Tarde demais para tentar salvar o salvador da humanidade. E não deu outra: mais uma vez Cristo foi vítima de uma armação, os sacerdotes já haviam providenciado seu marketing religioso sobre a massa alienada dos judeus, a mesma por sinal, que havia aclamado Jesus alguns dias antes. O veredicto popular foi taxativo: para Jesus, a morte; para Barrabás, a libertação.

De acordo com as leis romanas, Cristo não poderia ter sido crucificado, por não ser cidadão romano e sim judeu, portanto, deveria ser julgado de acordo com as leis mosaicas, ou seja, as leis de Moises. E mais num caso de subversão, ou tentativa de rebelião, a pena máxima que poderia ser aplicada deveria ser a flagelação romana, e não a crucificação, pena máxima atribuída para crimes mais graves como roubos ou estupros. Conclusão: a condenação de Jesus foi juridicamente falando um erro, que feriu os princípios mais básicos do direito natural do homem.

O desfecho já é bastante conhecido: dor, humilhação, sacrifício, violência, morte. Parecia o fim do sonho de construir uma sociedade nova, mais fraterna, mais justa, e portanto verdadeiramente humana. Para os poderosos a crucificação de Cristo assinalava a vitória do opressor, uma certeza de que o status quo não mudaria, ou seja os ricos permaneceriam ricos e os pobres estariam condenados a mais absoluta miséria. Todavia, a ressurreição de Cristo veio para provar o contrário: o sonho não morreu, apenas transcendeu de sentido, mudou de direção, agora nós é quem somos chamados ao compromisso de dar continuidade a obra de Cristo, não apenas com palavras, mas com ações, com gestos concretos que traduzam a paz, a esperança e a certeza de que os ideais de Cristo jamais serão esquecidos. Ele viveu por nós, Ele morreu por nós. Quisera que vivêssemos em função dele, e que morrêssemos sem nada dever ao maior ser que a humanidade já conheceu.

* O autor é historiador, professor, escritor; membro da Academia de Letras e Artes da Cidade do Paulista.

Publicado no Jornal do Commércio, edição de 29 de março de 2000

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